sexta-feira, 17 de junho de 2016

Mas e o feto?

[Se você precisa de um aborto, esta organização pode te ajudar]

"Mas, gente, e o feto?". Atreva-se a fazer essa pergunta em um papo com feministas! Mas atenção: recomendo antes verificar se as saídas de emergência estão desobstruídas, porque a reação vai ser braba. Se for em grupo de Facebook, então, aí é que a coisa engrossa mesmo. É que quando você pergunta "mas e o feto?", boa parte das feministas escuta outra coisa. Elas automaticamente supõem que você é contrário à descriminalização do aborto - uma posição inadmissível dentro do movimento. O curioso é que as condições básicas para que aconteça um aborto são as seguintes: 1) uma mulher; 2) um feto. Mas o Feminismo, salvo exceções, não topa discutir o item 2. Será medo? Será que temos medo de encontrar em um fundo de gaveta algum sentimento, algum pesar pela vida do feto? Será que estamos tentando tapar a vozinha que sopra "mas ele também tem direitos..."?



Não consigo compreender a recusa em falar sobre o feto como outra coisa que não uma defesa contra as respostas que o Feminismo não quer enxergar. Nós já estamos cansadas de ler, ouvir histórias e assistir a documentários sobre as mulheres que morrem por conta de abortos inseguros. E devemos continuar repetindo essas histórias, porque essas mulheres existem. Mas, companheiras, o feto também existe. Existe enquanto realidade concreta e existe na dimensão simbólica, seja na recusa das feministas (recusar é atestar a existência) ou na empatia infinita daqueles que sofrem pelos fetos abortados. A pergunta está na mesa, irmãs. É nosso desafio aceitá-la. É o único caminho possível para comprovar - ou seria verificar? - que a legalização do aborto é a única solução humana. E se a gente refletir sobre o feto e chegar à conclusão de que seus direitos devem prevalecer sobre os da gestante, que seja! Esquivar-se de um debate por medo das respostas no caminho é desonesto. Simplesmente coisa que não se faz. Dito isso, sigam-me os bons!



A primeira coisa a ser dita é que, ao contrário do que se costuma crer, a discussão sobre aborto não é uma discussão sobre o direito à vida. Nós não temos problemas com a morte de células - como os óvulos e espermatozoides, por exemplo - e de plantas - dos eucaliptos de que fazemos portas e papeis até a salada. A maioria de nós não tem problema sequer com a morte de bois, galinhas, porcos, peixes e outros animais que saboreamos diariamente. Sim, o feto é uma vida. Ponto pacifico. Mas não, o problema do aborto não é matar uma vida. Então qual é o problema? Apertem os cintos que vamos começar a complicar a parada.



A turma que não curte abortos gosta de falar em abortos como "o assassinato de um bebê inocente". É assim, de fato, que elas percebem um aborto. E, gente, nós também achamos que o homicídio de um bebê é crime dos mais tenebrosos, confere? Todo mundo no mesmo pé? Avante, feministas, que chegamos ao ponto culminante: o que precisamos buscar entender é a diferença entre um feto e um bebê - se é que há diferença, não vamos começar com ganho de causa pra nenhum dos lados! Essa questão é o pote de ouro no final do arco íris desse debate! Para o alto e avante!

Pode elencar o que você quiser: capacidade de amar, de sentir empatia, de sentir dor, de se comunicar. Cidadania, pensamento, imaginação, racionalidade. Você pode pensar em qualquer característica que permita que você diga: "se o feto tem isso, então é um bebê". Eu te desafio: qualquer aspecto no qual você pensar vai depender completamente da existência de uma estrutura fisiológica chamada sistema nervoso central. Falando bem toscamente, é o que temos dentro da nossa caixola e da coluna vertebral: cérebro e medula. Eu sei que a gente gosta de pensar que somos seres transcendentais e que nossa luz seguirá se derramando pelo universo além da eternidade, mas até onde a ciência pode comprovar - eu sei, a ciência não é perfeita, mas ela é bem legal, vai - somos feitos de matéria e energia (não a dos duendes, a dos átomos), e até nossos mais psicodélicos sonhos decorrem de uma interação físico-química. Sonhos, aliás, são exemplos de fenômenos que não existem sem sistema nervoso central. Nós não sabemos ao certo se gatos e vacas sonham (todos os mamíferos têm sistema nervoso central), mas nós temos bastante certeza de que árvores e ostras não sonham. E nós também temos certeza: fetos não sonham, não amam, não sentem empatia ou dor, não se comunicam. Não têm cidadania, pensamentos, imaginação, racionalidade. 

Com 8 semanas. Você pode achar fofo; ele ainda não pode achar nada.
Pode parecer frio pensar no feto como um reles organismo. Tenho amigas que planejaram suas gestações e amaram seus fetos a partir do instante em que o xixi fez aparecer dois risquinhos no teste de farmácia. É que as minhas amigas têm sistema nervoso central, e quem tem sistema nervoso central - vejam que bonito - tem capacidade de amar o que for: fetos, animais, dinheiro, a poltrona da bisavó. Há até quem ame ideias extremamente complexas como o universo, o anarquismo ou algum deus. Mas o feto, embora esteja crescendo e se alimentando na barriga da gestante, não pode corresponder ao afeto que os adultos ao redor da barriga eventualmente dediquem a ele, tanto quanto nenhuma das minhas preciosas orquídeas pode me amar de volta. Eu sei que é tocante ver aquelas imagens dos fetos dentro da barriga. Eles parecem tão humanos, com seu bracinhos de tiranossauro e sua cabeça desproporcional e translúcida! Mas essa é só uma imagem que nosso sistema nervoso central, via de regra, traduz como digna de afeto. É bonito que sejamos capazes de sobrepor aos fatos os mais diversos afetos, mas é tolo negar os fatos. Os fetos podem vir a ser milhares de coisas. Eu e Hitler, você e Gandhi, todos já fomos fetos. Mas para falar sobre aborto precisamos nos referir não ao que o feto pode se tornar, mas ao que é. 

Fato: não existe nenhum conflito moral no aborto de um feto sem sistema nervoso central formado. É por isso que a lei que se discute hoje no Brasil (fiquem tranquilos, não tem nenhuma chance de passar) autoriza o aborto até a décima segunda semana de gestação. Essa data é apontada pela Medicina como o marco após o qual o feto já seria capaz de sentir, uma vez que seu sisteminha nervoso central já estaria lá. Tem gente que é a favor do aborto mesmo depois disso, mas aí a discussão é outra. Aqui eu falo sobre o parâmetro que balizou as legislações de praticamente todos os países que descriminalizaram o aborto. Falo sobre a questão que já foi exaustivamente debatida em todos os tribunais internacionais que se prezem: aborto até a décima segunda semana, gente, tá tranquilo, tá favorável. 

Pra finalizar, faço um apelo às irmãs de luta para que enfrentem as perguntas de quem discorda de nós. Nós precisamos respondê-las, e precisamos inclusive pautá-las. Você deve ser capaz de olhar nos olhos do feto, e se encontrar lá alguma poeira de humanidade - mesmo que seja por motivos religiosos - você precisa se perguntar se é realmente a favor do aborto. E se você não for, tudo bem. Você não é um monstro por isso. Mas nós precisamos fazer isso se queremos engordar o nosso movimento lindo com conteúdo sólido, com conceito, com argumento dos bons! E se o nosso argumento não for o mais forte, que a gente possa mudar de ideia. Mudar não é vergonha. Vergonha é passar a vida bebendo certezas fáceis e recusando as perguntas que incomodam.


Reflexões de uma lagarta no Facebook

4 comentários:

  1. Trocar ideia é legal quando não se está diante de uma mentira. Quando se está, fica difícil respeitsar. "
    Fato: não existe nenhum conflito moral no aborto de um feto sem sistema nervoso central formado." Lamentável.

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  2. O texto é otimo e a reflexao que gera também. Só achei que a introduçao generalizou o movimento e colocou como se todas feministas tivessem a mesma opinião e abordagem. Acho que esse tipo de coisa não ajuda a melhorar nem um pouco a imagem ruim que a maioria das pessoas têm do Feminismo. Não que devamos passar a mão na cabeça mas acho que dava pra dar sermão sem ajudar a propaganda essa imagem negativa do movimento.

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  3. O texto é otimo e a reflexao que gera também. Só achei que a introduçao generalizou o movimento e colocou como se todas feministas tivessem a mesma opinião e abordagem. Acho que esse tipo de coisa não ajuda a melhorar nem um pouco a imagem ruim que a maioria das pessoas têm do Feminismo. Não que devamos passar a mão na cabeça mas acho que dava pra dar sermão sem ajudar a propaganda essa imagem negativa do movimento.

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