segunda-feira, 20 de abril de 2015

Feminicídio: a lei está correta

por Letícia Bahia



Francisco de Assis Pereira: você não se lembra do nome, mas você conhece o homem. Em 5 de agosto de 1998, o Brasil finalmente conheceu a identidade do homem que ficou conhecido como "maníaco do parque" depois do estupro e assassinato de 6 mulheres. Outras 9 sobreviveram a seus ataques. 

Mais de um século antes, em 1888, as 11 prostitutas assassinadas pelo lendário Jack, o estripador, não tiveram a mesma sorte: a identidade do assassino jamais foi descoberta, e os crimes seguem impunes.

Entre os dois assassinos, muita coisa em comum: ambos ganharam da imprensa apelidos caricatos, que reforçam a ideia de que eles são exceções monstruosas, quiçá sub humanas. Ambos ocupam o protagonismo dos casos. Quem se lembra do nome das mulheres mortas, ou pelo menos de quantas foram? Os crimes de ambos tinham a clara intenção de degradar suas vítimas. As mortes eram sujas, violentas. Os corpos mostravam as marcas de assassinos sádicos. Sêmen, calcinhas enroladas no pescoço, marcas de espancamento, corpos em poses obscenas: tudo isso repetia o recado inconfundível: mulheres como aquelas mereciam o que receberam. Alguém precisava puni-las.

Jack, o Estripador, e Francisco de Assis Pereira: dois feminicidas célebres. Ou, pelo menos, assim os enquadraria a lei brasileira que entrou em vigor no início deste ano - com justa razão, ao contrário do que alegam aqueles que ainda não entenderam a situação da violência contra a mulher no Brasil. 




É fácil perceber que Jack e Francisco são feminicidas, e a trajetória de vida do feminicida tupiniquim corrobora a tese de que ele era um misógino exemplar. Ninguém nega que as vítimas foram escolhidas por serem mulheres. Mas por que não acontece o mesmo quando José da Silva mata Maria de Souza? Por quê não conseguimos perceber estes assassinatos "menos bárbaros" - com o perdão da relativização atroz - como crimes de gênero?


Nós insistimos na crença de que não há nada em comum entre Jack e Francisco e sua versão genérica, nosso hipotético José da Silva. Jack e Francisco? Loucos! Psicopatas! A morte é pouco para esse tipo de verme! Mas José? Não, o caso de José é outro. Reprovável, é claro! Digno de punição, inegável! Mas há que se compreender: Maria dormiu com o cunhado! José matou Maria por... ciúmes!

Este é o panorama dos feminicídios na mídia. O assassino é louco, como nossos heróis célebres, ou ciumento, como a maioria dos que viram manchete. O pior é que o assassinato de Marias não chega a ser justificável - no sentido de que o achamos justo, correto - mas torna-se, no relato da mídia, compreensível. É que nós acreditamos na falácia dos Josés possuídos por ciúmes, tomados pela dor do abandono, impossibilitados de superar o trauma de uma mulher que escolheu entregar-se a outro. Mas a verdade é outra.

O que une as vítimas de feminicídio - das prostitutas inglesas às Marias brasileiras - é a transgressão do lugar social determinado para as mulheres pelo patriarcado. É prostituta? Morre! É bonita e deu bola para um desconhecido no shopping center? Morre! Botou chifre no marido? Pediu o divórcio? Trocou de namorado? Morre também! As mulheres que morreram por serem mulheres morreram para aprender a servir, a trepar só com quem o mestre mandar, a não usar mais aquela roupa de puta. É simples assim. Mulheres são mortas porque há homens que não aceitam que elas não lhes pertençam.

Foi assim com Eloá Cristina Pimentel, assassinada pelo ex-namorado Lindemberg Fernandes Alves depois de mais de 100 horas de cárcere privado. Foi assim com Eliza Samúdio, assassinada pelo ex goleiro Bruno Fernandes, que não queria pagar pensão ao filho do casal e que, meses antes do crime, tentou forçar Eliza a tomar abortivos. Foi assim com Sandra Gomide, alvejada pelos tiros do jornalista Antônio Pimenta Neves, com quem ela não queria mais manter um relacionamento. Foi assim com Ângela Diniz, morta a tiros pelo playboy Doca Street, que matou-a por que não aceitou dividi-la com mais ninguém. Foi assim com Maria do Carmo Alves, morta e esquartejada por seu amante, o cirurgião Farah Jorge Farah. Foi assim com Beatriz Helena de Oliveira Rodrigues, cujo corpo foi encontrado carbonizado dentro do carro do marido, Luiz Henrique Sanfelice, que alegou que a mulher o traía. Foi assim com Eliane Aparecida de Grammont, executada com um tiro pelo ex marido, Lindomar Castilho, que não aceitou que ela tivesse um relacionamento com seu primo. E é assim com mais uma montanha de mulheres cujas histórias jamais conheceremos. 

É falacioso dizer que estas mulheres foram mortas por ciúmes, embora seja provavelmente verdadeiro afirmar os criminosos sentiram ciúmes. Eu também já senti ciúmes. Você, leitor, já sentiu também. A questão é que nós lidamos com isso, compreendendo que o outro é dono de si, e que, portanto, cabe a nós lidar com a dor de uma traição ou de um abandono. Quando se mata alguém por estas razões o que se está afirmando é o seguinte: "você me pertence e transgrediu minhas regras ao não me escolher. Merece, por isso, morrer". Então, no frigir dos ovos, o motivo não é o ciúme - embora ele esteja presente em boa parte dos casos. O motivo é que alguns homens acreditam ser donos de algumas mulheres.  

Antes que alguém se sinta tentado a argumentar que o mesmo quadro pode acontecer com a arma na mão da mulher, eu já me adianto: aconteceu, acontece e vai continuar acontecendo. Mas para que a gente entenda que matar mulheres "que não se comportam" é um padrão nacional, precisamos destacar um dado importante, levantado em 2012 pelo Mapa da Violência. O relatório é categórico ao afirmar que mais da metade das mulheres mortas a partir dos 20 anos foram assassinadas por seus cônjuges ou ex-cônjuges. Elas foram assassinadas porque não quiseram ser as mulheres que seus maridos queriam que elas fossem. 

É claro, é óbvio, é gritante que nem todo assassinato de mulher configura feminicídio. Em casos de latrocínio (roubo seguido de morte), por exemplo, raramente é. Nesses casos o sujeito foi assaltar alguém, que poderia ser qualquer pessoa, e o crime acabou em tragédia. Gênero, nesses casos, não é a questão. 

É igualmente evidente que tornar o feminicídio um agravante para o crime de homicídio nada tem a ver com algum tipo de "ranking de importância das vítimas", como alguns sugerem. Todas as vítimas merecem Justiça. Do ponto de vista da lei, são todas igualmente importantes e não vão a julgamento. Aliás, esse negócio de sermos iguais perante a lei (mesmo depois que morremos) é um pilar fundamental do estado do direito e, bem, eu sou fã do estado de direito. O sentido jurídico dos agravantes (exemplos: motivo torpe, impossibilidade de defesa da vítima, entre outros) se refere ao criminoso. Se o crime tem muitos agravantes, isso significa que o homicida é mais mau, ou mais frio, ou que oferece mais risco à sociedade ou, em termos práticos, que a punição deve ser mais dura. Isso quem diz é a lei, não sou eu. Mas eu estou certa de que você concorda: matar uma criança é um ato mais covarde do que matar alguém do seu tamanho, confere? O sujeito que assassina uma criança é mais covarde, cometeu um ato mais atroz, não é mesmo? Deve, portanto, receber uma pena mais severa, sim? A menos que o leitor seja contra punições, mas aí é o caso de discutirmos Foucault em outro capítulo. No de hoje, infelizmente eu quero celebrar esta derrota vitoriosa das mulheres.

Eu estou feliz que a lei do feminicídio tenha sido aprovada. É um passo importante no reconhecimento de que em muitos casos - repito: mais da metade - não se trata de um crime cometido por um homem tresloucado, mas de um crime racional, movido pelo sentimento de posse masculina sobre as mulheres. Mas ainda estou pra ver a sociedade, e sobretudo a mídia, reconhecer esses crimes como a covardia que são. 






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